Em 8 de março de 2022, o Presidente da República Jair Bolsonaro sancionou a Lei Complementar (LCP) nº 191/2022 que alterou significativamente o 8º artigo da Lei Complementar (LCP) nº 173/2020 que estabeleceu o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19).
Em suma, a LCP 173/2020 na data de sua publicação (o aspecto temporal é importante ter em mente), trazia o artigo 8º que proibia até 31/12/2021 que todos entes federados a...
I - conceder, a qualquer título, vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a membros de Poder ou de órgão, servidores e empregados públicos e militares, exceto quando derivado de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior à calamidade pública;
... sem fazer qualquer distinção de cargo, função, categoria ou segmento no serviço público.
Na versão original, a LCP 173/2020 possuía apenas seis (6) parágrafos sendo o 6º vetado.
Houve acréscimos de parágrafos pela LCP 178/2021 e, atualmente, pela LCP 191/2022, contando agora a lei complementar com nove (9) parágrafos.
Pois bem, já a nova LCP 191/2022, após transcorrido o lapso temporal citado na versão original 173/2020, criou “exceções” para as “proibições” e contemplou “apenas” dois segmentos: Saúde e Segurança Pública.
Pela Lei 173, não somente pagamentos de benefícios ligados ao tempo de serviço e de aumento de salários foram proibidos, mas também a contagem do tempo para pagamentos futuros. Entre esses benefícios ligados ao tempo de serviço estão anuênios, triênios, quinquênios e licenças-prêmio.
Agora, com Lei Complementar 191/22, a exceção valerá no período especificado para os servidores da Saúde e da Segurança Pública de todos os entes federativos. Continuará proibido o pagamento de atrasados devido à contagem de tempo na pandemia, mas o procedimento habitual foi retomado desde janeiro deste ano.
Os segmentos citados comemoraram e com mérito. Estiveram diretamente envolvidos em cuidar da população durante a pior crise sanitária do nosso século. Merecem todo reconhecimento, valorização e respeito.
O problema reside nos outros segmentos que igualmente também mantiveram suas atividades laborais como, por exemplo, os funcionários de Recursos Humanos. Afinal, se a Segurança e a Saúde estavam na linha de frente “trabalhando”, as atividades de “apoio ou secundárias” ao combate da pandemia também assim estavam; e se assim fosse diferente, quem programaria os pagamentos dos trabalhadores e das contas públicas, mormente geridas pelos trabalhadores das secretarias de Finanças e Administração?
Sem contar com os educadores(as) que se reinventaram para não desassistir os alunos, os assistentes sociais que eram obrigados a dar as boas e as más notícias aos vitimados da pandemia nos hospitais e demais serviços que sua função assim lhe exige.
Estaríamos falando de isonomia? Sim, com certeza. Que bom se a celeuma parasse nesse princípio.
Essa exceção cria e afeta um dos pontos mais efêmeros da vida e do Direito enquanto norma: o “tempo”.
O tempo é um fato e as normas não existiriam ou não teriam efeito se não considerasse a “temporalidade” do “fato social”.
Nesse processo de juridicização da temporalidade normativa (criação de leis), temos que considerar a bidimensionalidade temporal, ou seja, o antes (a quo) e o depois (ad quem), levando em conta o início de vigência e os bloqueios normativos criados pela legislação nacional quanto a retroação dos efeitos da legislação nova.
As regras de anterioridade, anualidade e irretroatividade tem regime e eficácia típica de “garantia”, e para exemplificar a presença de tais garantias na legislação enquanto princípio:
Constituição Federal
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
III - cobrar tributos:
a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado;
Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) - DECRETO-LEI Nº 4.657, DE 4 DE SETEMBRO DE 1942.
Art. 2o Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
§ 1o A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
§ 2o A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.
§ 3o Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência.
Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
Código Tributário Nacional - LEI Nº 5.172, DE 25 DE OUTUBRO DE 1966.
Art. 105. A legislação tributária aplica-se imediatamente aos fatos geradores futuros e aos pendentes, assim entendidos aqueles cuja ocorrência tenha tido início mas não esteja completa nos termos do artigo 116.
As garantias da irretroatividade e anterioridade visam proteger a previsibilidade, a confiança e a estabilidade das leis “no tempo”.
A outro disso, temos a irretroatividade do não benigno, ou seja, as leis só retroagem para o bem.
Entrando no cerne do debate, temos que a LCP 173 contemplando o princípio da isonomia deu tratamento igual a todos os servidores públicos quanto ao não pagamento e não computo de tempo de trabalho para fins de anuênios, triênios, quinquênios e licenças-prêmio.
Posteriormente, a LCP 191 criou exceções apenas quanto ao computo desses tempos para os segmentos da Saúde e Segurança Pública abandonando todos os demais.
Nesse cenário, seria possível conjecturar eventual inconstitucionalidade da referida LCP 191.
Isso porque a mesma retroagiu em benefício de dois segmentos, porém em malefício de dezenas de outras, violando o princípio da isonomia, bem como o da irretroatividade da norma.
Isso porque, quando da LCP original não era possível prever a bidimensionalidade temporal com relação aos efeitos da Pandemia com relação a sociedade em geral, e por consequência com as contas públicas (previsibilidade).
E no momento atual, de ano eleitoral, já sendo possível fazer a leitura parcial da bidimensionalidade temporal do antes, o durante e o caminho do fim da pandemia, salvo melhor juízo, fica eventualmente mais fácil ponderar os erros e acertos, bem como beneficiar aos que heroicamente estavam no fronte de batalha, embora conveniente ao ano eleitoral, eis que na promulgação da LCP 173 já era evidente que ambas as categorias, Saúde e Segurança, já estariam na linha de frente em razão de seus ofícios.
Assim sendo, e concluindo, pelas razões expostas não é justo e, eventualmente, inconstitucional retroagir no tempo a fim de beneficiar segmentos em prejuízo de toda uma cadeia de serviços públicos que são, foram e sempre serão componentes essenciais ao funcionamento do Estado como um todo, prejudicando o princípio da isonomia na medida em que todos foram importantes na medida de sua proporção e suporte durante a pandemia de Covid-19.
RICARDO MARCONDES MARRETI
OAB/SP 247.856