Política
Entrevista
O ex-presidente Roberto Amaral critica as escolhas da legenda, entre elas o apoio a Aécio Neves (PSDB).
por Rodrigo Martins — publicado 19/10/2014 08:59, última modificação 19/10/2014 09:43
Ao aliar-se acriticamente aos tucanos, o PSB “jogou no lixo o legado de seus fundadores” e “renunciou ao seu futuro”. Essa é a dura avaliação feita por Roberto Amaral, que acaba de deixar o comando do partido. “Ao invés de construir um socialismo democrático, libertário, contemporâneo, o PSB optou por abraçar o passado, o atraso, representado pela socialdemocracia de direita. Um revival da tragédia do neoliberalismo de FHC sob o comando de mãos mais incompetentes”, afirma Amaral, ex-ministro da Ciência e Tecnologia de Lula e um dos principais responsáveis pela refundação do PSB, em 1985. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida a CartaCapital.
Carta Capital: Foi uma surpresa o apoio do PSB a Aécio Neves?
Roberto Amaral: Na verdade, a atual direção está coerente com uma tendência que vinha se consolidando no partido há algum tempo, e contra a qual muitos de nós vínhamos lutando sem êxito. O PSB renasceu em 1985 como uma opção socialista e democrática no campo da esquerda. Este era o projeto original comandado por Jamil Haddad e consolidado a partir dos anos 1990 por Miguel Arraes. De uns anos para cá, contaminado pelo vírus do pragmatismo, o PSB adotou a estratégia do crescimento a qualquer custo, como via do poder pelo poder. Da esquerda transitou para a centro esquerda e, com a última decisão, de apoiar o candidato da direita, optou claramente pelo campo do centro-direita. Esse novo partido não pode mais dizer-se herdeiro de João Mangabeira, nosso fundador em 1947, ou de Miguel Arraes, de cujo pensamento comum transformou-se numa contrafação. O PSB de hoje repudia tudo o que seus fundadores representam.
CC: Por que o senhor faz essa avaliação?
RA: Na verdade, a recente nomeação dos novos dirigentes, com as exclusões que honram os ausentes, é clímax de um processo de recuo ideológico que não é de agora. Quem acompanhou a atuação da bancada do PSB na Câmara nos últimos anos já percebeu uma inclinação conservadora, agravada nas últimas eleições. Sob o pretexto de fortalecer a candidatura de Eduardo Campos à presidência da República, a maioria dirigente do PSB lançou mão de uma série de alianças inexplicáveis para nossos militantes e para a sociedade. Antiga estrela do DEM, o ex-senador Heráclito Fortes ingressou no PSB para reforçar nosso palanque no Piauí. Em Goiás, namoramos o Júnior do Friboi, que acabou nos abandonando acossado pelos negócios familiares no BNDES, e flertamos com o ruralista Ronaldo Caiado, afastado da campanha por Marina. Em Santa Catarina, entregamos nosso partido à oligarquia Bornhausen. Esses são apenas alguns exemplos. Deixamos de defender a revisão da Lei da Anistia e a punição dos criminosos da ditadura, tese que levantamos na Constituinte. Passamos a reconhecer os méritos do governo FHC, duramente combatido por nós. A independência do Banco Central transformou-se discurso de campanha. Fizemos tudo para atrair o agronegócio para o nosso bloco, tragédia que só não se consumou em face das contradições deles com Marina Silva. Trocamos os debates com os trabalhadores pelos interlúdios com o grande capital. Esse movimento deixou nossos militantes perplexos.
CC: Mas o que representa o apoio à candidatura do PSDB?
RA: Repudiar o passado e renunciar ao futuro. Tínhamos pela frente a tarefa histórica
de construir o socialismo do XXI, jogando fora os escombros do fracasso do “socialismo real”. Ao invés de construir o novo caminho, de um socialismo democrático, libertário, avançado, contemporâneo, o PSB optou, por abraçar o passado, o atraso, representado pela socialdemocracia de direita. Um revival da tragédia do neoliberalismo de FHC sob o comando de mãos mais incompetentes. Atendendo às lideranças de Miguel Arraes e Jamil Haddad, fizemos oito anos de oposição ao governo de Fernando Henrique Cardoso. Na verdade, o rompimento com o neoliberalismo é até anterior. Haddad era ministro da Saúde de Itamar Franco. Abandonamos o governo Itamar após FHC assumir o ministério da Fazenda e encampar uma severa política antitrabalhista. Coube-me a honra de acompanhar Arraes ao gabinete do então ministro da Fazenda, e virtual primeiro-ministro de Itamar, para oficializar o rompimento do PSB. No ano seguinte FHC se elegeria presidente e Arraes, governador de Pernambuco. E pagamos caro por esse rompimento.
CC: Como assim?
RA: Arraes sofreu toda a perseguição possível que lhe podia mover o governo federal. Governou a pão e água, sem poder renegociar a dívida do estado, herdada da gestão anterior, sem obter novos empréstimos. É a esse FHC que o PSB de hoje canta loas. É dessa época a “crise dos precatórios”, que terminaria impedindo a reeleição de Arraes. Tanto ele quanto Eduardo Campos, então secretário estadual da Fazenda, comeram o pão que o diabo amassou. Nessa campanha, o PSB apresentou-se como alternativa à polarização entre PT e PSDB, polarização velha e artificial, que não paramos de condenar. Como agora optamos por Aécio sem fazer uma autocrítica? Não é o caso de dizer que, antes, Arraes, Jamil e nós todos estávamos errados?
CC: Qual grupo controla hoje o PSB?
RA: Basta ver a composição da nova Executiva do partido. Está evidente a hegemonia do núcleo pernambucano. Com exceção do senador Fernando Coelho, político antigo e experimentado, que chega ao PSB depois de um longo convívio com o PDS, o PFL, o PMDB e o PPS, os demais são jovens burocratas que não tiveram oportunidade de conviver com Arraes, e não têm mesmo história no PSB. Forjados no governo de Campos, emergiram da estrutura administrativa diretamente para a disputa eleitoral, sem o estágio da vida partidária. O elemento aglutinador era o projeto de Eduardo Campos. São jovens promissores, mas que absorveram a visão autoritária da classe dominante pernambucana que, à direita e à esquerda, se comporta como o antigo senhor de engenho. A vida, para eles, continua dividida entre a Casa Grande e a Senzala, onde moram os “outros”, os que não são “eles”.
CC: Paulo Câmara elegeu-se governador em primeiro turno com o maior porcentual de votos do País. O PSB de Pernambuco também elegeu um senador e oito deputados federais. Não seria natural esse grupo ter mais influência na direção do partido?
RA: Essa é a justificativa deles. Mas um partido de esquerda não deveria permitir que votos fossem usados como trunfo para impor a hegemonia de um grupo. Compreendo a importância da aritmética, mas preferiria que o eixo fossem as posições políticas. Meus amigos pernambucanos de hoje falam muito em Arraes, mas dele só veem o legado eleitoral. Há um Arraes esquecido. Quando ele elegeu-se governador de Pernambuco, anos 1990, saiu das eleições como campeão nacional de votos, um desempenho superior ao das eleições deste ano. Nem por isso tentou impor-se alegando sua força. Sequer reivindicou presença na Executiva. Após muita insistência minha, Arraes aceitou a primeira vice-presidência do PSB. Ele não impôs condições nem requereu vagas. Sempre demonstrou a disposição de manter na Executiva e no Diretório uma representação nacional, sabia que o fundamental é a hegemonia que se constrói na política.
CC: A candidatura de Eduardo Campos era consensual no PSB? Era o momento certo para o partido lançar candidatura própria?
RA: Ele era o presidente do PSB e nossa principal liderança. Todo partido tem o sonho de lançar um candidato à Presidência da República competitivo, capaz de consolidar a imagem da legenda junto ao eleitorado, reforçar sua identidade e propiciar o seu crescimento. Mesmo acreditando que não era o momento certo de lançar a candidatura própria nas eleições de 2014, em face de nossa fragilidade estrutural e na ausência de acumulação política, acatei a vontade da maioria. À época, eu fazia parte do conselho de administração da usina de Itaipu. Deixei o cargo. Todos os líderes do PSB abandonaram o governo Dilma Rousseff para manter a coerência com o projeto de Campos. Abracei a campanha, mesmo com muitas dúvidas, sobretudo pelas alianças esdrúxulas que se formavam para garantir os palanques estaduais.
CC: O que representou a passagem de Marina Silva pelo PSB?
RA: Vivemos dois momentos distintos. Primeiro, quando o PSB abrigou Marina e seu grupo após a Justiça Eleitoral negar o registro da Rede. Nessa primeira fase, houve grande euforia. Ela trouxe ânimo para a militância do PSB. Acreditava-se que, com Marina na chapa, Campos finalmente alcançaria dois dígitos nas intenções de voto. Mas isso não ocorreu até o desastre que o vitimou. Com a tragédia, tivemos a comoção e a superexposição de Marina na mídia. Ela disparou nas pesquisas. Mas não conseguiu manter toda aquela vantagem ao longo da campanha.
CC: Lideranças do PSB e da Rede atribuem a desidratação de Marina Silva aos ataques dos adversários, sobretudo do PT.
RA: Sem deixar de criticar certos exageros e mesmo grosserias, não considero inteligente atribuir os problemas da Marina à campanha dos adversários. Esse é o papel deles: com bons ou maus modos, tentam desconstruir os oponentes. A queda de Marina começou com a divulgação de seu programa de governo, rico de contradições, e os desentendimentos dentro de seu grupo e os representantes do PSB, a começar pelo Carlos Siqueira, que abandonou a campanha. Programa é para governar, não é para fazer campanha. Depois de meses de muita conversa solta, o documento veio a público como uma colcha de retalhos. Em vez de defender suas teses, Marina foi forçada, até o final da campanha, a ficar na defensiva, dando explicações sobre pontos nebulosos. Veja a questão da autonomia ou independência do Banco Central, por exemplo. É uma proposta que não interessa aos trabalhadores, à grande maioria dos eleitores. Interessa a 100 banqueiros e rentistas. E quem trouxe esse tema para o debate? A questão relativa à exploração do pré-sal, que nos desidratou no Rio de Janeiro e no Espírito Santo, foi outra invenção de Marina. A polêmica em torno dos direitos LGBT também surgiu do programa de governo. Sem falar daquelas declarações sobre revisão ou flexibilização da Consolidação das Leis do Trabalho. Até hoje não entendi o que ela quis dizer. Nossa campanha não tinha estratégia. Por isso, fomos tragados pela dos adversários.
CC: Que legado ela deixou para o PSB?
RA: Até para ser honesto com Marina, preciso esclarecer um ponto. Ela jamais prometeu ficar no PSB. Entrou no partido para não ser excluída do processo eleitoral, mas sempre manifestou de forma clara a intenção de criar seu próprio partido e seguir outro rumo após as eleições. Marina não entrou nas disputas internas do PSB. Tanto é verdade que Eduardo Campos lhe ofereceu uma posição na Executiva do partido, e ela recusou. O importante é saber qual foi o legado da campanha para o PSB. Será uma tragédia se tiver sido apenas a adesão ao neoliberalismo arcaico.
CC: Então Marina não influenciou na escolha do PSB por Aécio?
RA: Ao contrário, o apoio precipitado e incongruente ao Aécio foi uma forma de o PSB levar a Marina a apoiar Aécio. No meio da campanha, ficou evidente para mim que Marina não chegaria ao segundo turno. A disputa seria mesmo entre Dilma e Aécio. Então procurei Márcio França (vice-governador do tucano Geraldo Alckmin em São Paulo) e comuniquei que não teria condição de presidir o PSB caso a Executiva optasse pelo apoio a Aécio. Ocorreu exatamente o que eu temia, com um agravante: nosso apoio foi absolutamente acrítico. A saída de Marina Silva foi mais honrosa. Ela condicionou o apoio à candidatura do PSDB a uma discussão programática. Elencou alguns pontos para formalizar o acordo. Podemos até criticar o conteúdo do que ela apresentou, mas ela não entregou o apoio de bandeja.
CC: A deputada Luiza Erundina diz que a reunião para definir a posição do PSB no segundo turno foi um jogo de cartas marcadas. Aécio esperava à porta para receber o apoio...
RA: É verdade. E não houve discussão programática alguma. O PSB só se preocupou com isso no dia seguinte. Um companheiro me apresentou cinco pontos para sugerir à campanha tucana. Parece piada. O apoio já havia sido oficializado no dia anterior, as imagens já estavam no programa de tevê de Aécio. Vamos propor sugestões depois de abraçar a campanha? Na verdade, antes disso, presenciei honrados colegas de partido discutindo cargos no eventual governo do PSDB. Eles disputavam nacos do Estado, postos em ministérios. Não vou citar nomes, mas alguns jornalões de São Paulo já expuseram os projetos de alguns deles.
CC: Como fica a situação dos divergentes neste novo PSB?
RA: Não dá para fazer qualquer avaliação antes do fim da corrida presidencial. Fala-se, por exemplo, da fusão do PSB com o PPS. Nas atuais circunstâncias, é um caminho lógico, embora desastroso, terrível, suicida. Márcio França, que respeito pela sua permanente sinceridade, disse que esse acordo já vinha sendo negociado com Eduardo Campos. Se isso de fato ocorrer, boa parte dos quadros do PSB ficará alijada das instâncias de direção do novo partido. Temo que a nova sigla se converta num satélite da socialdemocracia, sem espinha dorsal, sem conteúdo, sem propósito e sem projeto. Uma ameba. Haverá uma debandada, comandada, suponho, pelo bravo caráter de Erundina. Sinceramente, não acredito que o PSB possa retomar o caminho da esquerda no curto ou mesmo no médio prazo. Mas pode, eventualmente, respeitar as divergências, abrir espaço para uma discussão interna mais ampla. Mesmo assim, estou cético.
CC: O senhor pretende abandonar o partido?
RA: De forma alguma. O PSB não pertence a este grupo que hoje está no comando. Aliás, não pertence a grupo algum. Ele pertence à sociedade brasileira, a todos que acreditam na proposta de um socialismo democrático e libertário. Para ser socialista, um partido não precisa carregar o termo no nome. Mas, se o carrega, tem a obrigação de honrar o compromisso.
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/revista/822/201co-psb-decidiu-abracar-o-atraso201d-5352.html